sábado, 27 de novembro de 2010

A questão racial e a superação do eurocentrismo na educação escolar



Vamos abordar neste artigo alguns problemas provocados pelas relações interétnicas e raciais na educação escolar brasileira. Em seguida apresentaremos algumas possibilidades teóricas para o tratamento da questão racial na educação escolar a partir da sociologia da educação e dos estudos culturais.
Em outras palavras, vamos tratar do currículo, do que deve e do que não deve constar nos currículos do ensino infantil, fundamental e médio. Vivemos em uma sociedade multicultural, onde convivem inúmeras etnias e já não é mais aceito que só os conhecimentos proporcionados pela visão de mundo eurocêntrica, branca, católica e masculina estejam representados na maneira como montamos os currículos escolares.
Estamos levando em consideração que a escola é um espaço público que é direito de todos os brasileiros, dentre os quais se incluem os negros. Mas esse é um direito que para ser respeitado não basta a presença física dos negros na escola. Os negros formam um contingente de aproximadamente 45% da população brasileira e que atualmente tem acesso à escolarização, mas as suas origens, a sua história, a sua cultura, por ignorância, preconceito ou má fé, não são tratados adequadamente nos currículos, nas concepções e práticas dos educadores.
Uma vez que uma realidade natural, próxima ao que é classificado como raça, não existe de fato, o termo “raça” pode ser considerado como uma ficção que adquire força de realidade, quando é usado para classificar os seres humanos. É necessário que seja esclarecido que
"... 'raça' é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural..., ...trata-se, ao contrário, de um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais... A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de 'raça' permite - ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite". (Guimarães, 1999: 9) 
Para quem duvida que existe um problema racial na educação escolar brasileira devemos recordar que quando discutimos alguns problemas do nosso sistema escolar como repetência, evasão de alunos antes da conclusão dos estudos, conflitos e violência na escola, por exemplo, muitas vezes deixamos de levar em consideração que a educação escolar vem sendo utilizada desde os primórdios da história da educação no Brasil para a imposição de valores, formas de pensamento, costumes e formas de produção da vida material dos colonizadores europeus sobre as populações naturais das localidades, denominados índios e considerados selvagens, ou sobre os trabalhadores trazidos da África como escravos e seus descendentes, também vistos como ignorantes, irracionais e preguiçosos.
Pesquisas educacionais já demonstraram, por exemplo, que o racismo contra os alunos considerados negros interfere no desempenho escolar, como demonstra um estudo realizado pelos professores Angela Albernaz, Francisco Ferreira e Creso Franco, da Pontifícia Universidade Católica – PUC do Rio de Janeiro. Utilizando-se de dados do Ministério da Educação, os pesquisadores concluíram que
“estudantes negros estão aprendendo menos do que os brancos de mesmo nível social e que estudam na mesma escola. Analisando as notas dos alunos no Sistema de Avaliação da Educação Básica SAEB, principal exame do ministério para medir a qualidade da educação brasileira, os pesquisadores [...] mostraram que os negros tinham, na média de todas as disciplinas verificada, desempenho inferior em 9,3 pontos ao dos brancos, mesmo quando eram comparados alunos da mesma classe social e da mesma escola. O estudo, financiado pela Fundação Ford, também aponta diferenças nas notas entre brancos e pardos. Nesse caso, a diferença a favor dos brancos é de 3,1 pontos. Para os pesquisadores, os resultados são uma forte evidência de que pode estar havendo preconceito na escola. Professores podem estar tratando de maneira desigual negros e brancos na mesma sala de aula.” (Jornal Folha de São Paulo, 18/05/2003)
Comentando a referida pesquisa, a ex-secretária da educação de São Paulo, a professora Rose Neubauer, afirmou que “as pesquisas sugerem que as crianças negras têm sido mais abandonadas na escola”, e que muitas vezes os professores têm a expectativa de que os alunos negros tenham desempenho escolar ruim e esta expectativa acaba influindo negativamente no trabalho que é feito com estes alunos, e no final do processo escolar o mau desempenho acaba realmente ocorrendo. Segundo a matéria jornalística, a pesquisa indica que ao entrar no ensino fundamental as crianças perdem auto-estima e isto influi no seu desempenho escolar. Conforme afirmou a professor Rose Neubauer, “o professor, ao elogiar apenas o cabelo macio de um aluno de cor branca, pode estar reforçando um modelo cultural de beleza. Isso pode afetar a auto-estima e o desempenho escolar de um estudante negro da mesma classe” (Jornal Folha de São Paulo, 18/05/2003).
Se hoje muitos reivindicam cotas para negros no ensino superior, em um país em que os negros têm acesso ao sistema escolar público, é porque os ensinos infantil, fundamental e médio não qualificam adequadamente as crianças e adolescentes negros. Entre as razões deste fracasso da escola pública, está o fato de que através do material didático, das aulas e das práticas pedagógicas a escola difunde representações erradas, distorcidas e mal intencionadas, preconceituosas e discriminatórias sobre os negros e sobre os povos que vivem no continente africano.
  1. O Eurocentrismo da educação escolar
A maior dificuldade para os professores solucionarem os problemas provocados pelos preconceitos racistas contra os negros e índios é que mesmo quando honestamente não queremos pensar e tratar os nossos alunos de forma racista, continuamos a acreditar na supremacia das culturas, formas de conhecimento, comportamentos e aparência apresentados pelos membros das civilizações européias. Não é um mero acaso, portanto, que os alunos que mais sofrem, atualmente, em nosso país, com a violência excludente ou assimilacionista de um sistema de ensino eurocêntrico e ainda colonizador, sejam exatamente os descendentes de índios e negros.
O eurocentrismo é um dos grandes obstáculos que devem ser superados para que seja assegurado o acesso e a permanência dos diversos grupos étnico-raciais no sistema escolar brasileiro, que é uma reivindicação política e educacional dos grupos sociais marginalizados. Para tanto, é necessário a “[...] criação de um contexto favorável aos marginalizados e oprimidos, para a recuperação da sua história, da sua voz, e para a abertura das discussões acadêmicas para todos” (BONNICI, 2000: pág. 10). 
A melhor forma de iniciar esta exposição é tentando trazer para o debate a definição do que estamos considerando como eurocentrismo. Trata-se da tendência de avaliar a aparência física dos indivíduos, as idéias, os costumes e comportamentos, as religiões e formas de conhecimento como a literatura, as artes, a filosofia e as ciências próprios das sociedades européias como superiores em relação aos seres humanos, culturas e civilizações das outras regiões do mundo.
Para a superação do eurocentrismo, de início, é necessário o estudo crítico dos problemas provocados pelos choques entre as formas de vida coletivas e culturas dos grupos humanos da América, África e Ásia com os colonizadores europeus, uma vez que a partir de tais choques ocorreram a destruição das condições materiais de vida dos primeiros, o seu desenraizamento espacial e a mestiçagem cultural que provocaram a sua marginalização e dominação pelas potências coloniais.

2.      Contestando a pretensão de universalidade das culturas e civilizações européias

Um problema que se apresenta quando discutimos a formação de professores críticos em relação ao eurocentrismo é que algumas modalidades de conhecimento, autores e obras denominados como “clássicos”, já chegam às instituições universitárias brasileiras legitimados simplesmente porque pertencem a um conjunto de saberes que comporiam aquilo que contemporaneamente vem sendo tratado como o “cânone ocidental”. É importante, pois, questionarmos as reivindicações de universalidade das manifestações culturais européias e contestarmos as narrativas e demais produções intelectuais eurocêntricas dominantes na universidade brasileira, como bem demonstram os autores e obras estudados nos cursos de licenciatura e na parte mais representativa dos programas de pós-graduação desenvolvidos em nosso país.
Podemos contestar, então, aquelas concepções e práticas européias que reivindicam para si serem consideradas como “universais”. Para o escritor palestino Edward Said, “...o principal componente na cultura européia é precisamente o que torna essa cultura hegemônica tanto na Europa quanto fora dela: a idéia da identidade européia como sendo superior em comparação com todos os povos e culturas não-europeus” (SAID, 1990: pág. 19). Às vezes, sem percebermos, tendemos a pensar que uma peça de teatro, um romance ou um poema de um autor europeu merece ser classificado como “universal”, enquanto as obras de arte enraizadas na vida de comunidades não-européias são classificadas como regionais, nacionais ou étnicas. Para ilustrar esta crítica, gostaria de lembrar um pensamento irônico do filósofo Jean-Paul Sartre, ele próprio um crítico do colonialismo francês, que ilustra bem a pretensão e a arrogância do pensamento eurocêntrico:
Era tão natural ser francês. Era o meio mais simples e econômico de ser universal. Os outros é que deviam explicar por que falta de sorte ou culpa não eram completamente homens” (citado por RIBEIRO, 1979: pág. 75).  
Não se trata de discutirmos a qualidade e a relevância dos saberes de origem européia, mas simplesmente a pretensão de que os mesmos tendem a ser sempre universais e superiores em relação aos saberes criados pelos grupos humanos espalhados pelo planeta. O escritor Saul Bellow, canadense radicado nos Estados Unidos e Prêmio Nobel de Literatura de 1976, expressa esse desejo de reduzir as diferenças humanas aos padrão das civilizações ocidentais quando afirma que “gostaremos de ler o Tolstoi zulu quando ele aparecer” (citado por TAYLOR, 2000: pág. 273), como se os zulus tivessem a obrigação de produzir um escritor como Tolstoi e como se este deva ser o critério para que um grupo seja reconhecido como verdadeiramente humano. O problema é que não é só Saul Below que raciocina desta maneira reducionista e etnocêntrica. Quando reverenciamos as produções de um Mozart ou um Einstein e as utilizamos como parâmetros para o julgamento da produção cultural de um povo, esta atitude revela, na verdade, a arrogância de querer definir um critério único para a beleza e para a inteligência humana.
As idéias de “universalidade” e “supremacia” são utilizadas como formas de violência simbólica exercidas pelos dominantes sobre os dominados e dependem da aceitação pelos próprios colonizados dos valores, concepções e práticas das civilizações européias. A violência simbólica só se completa quando os próprios dominados se consideram inferiores e aceitam a sua submissão aos poderes dominantes. É assim que se constrói a hegemonia das culturas e relações sociais capitalistas sobre os grupos subalternos compostos por mulheres, trabalhadores rurais, operários, índios e negros.
Não devemos, evidentemente, substituir a visão de mundo e as modalidades de conhecimento européias pelas africanas. Seria trocar o eurocentrismo por um afrocentrismo. Os movimentos negros não estão reivindicando isso, querem apenas que as suas origens, a sua história, a sua cultura e os seus interesses sejam levados em consideração, ao lado das outras visões de mundo e interesses representadas por mulheres, indígenas, homossexuais e as inúmeras etnias que compõem este país multicultural e multiétnico.
  1. Sociologia da educação e a questão racial
Podemos recorrer aos estudos da sociologia da educação para uma abordagem dos problemas empíricos suscitados pela relação entre os currículos e os processos educativos efetivos, como, por exemplo, o estudo do relacionamento entre os agentes no interior do espaço escolar que ocorre entre alunos; entre os alunos e os educadores e também dos educadores entre si. Nesse relacionamento podemos discutir se nós estamos respeitando as origens étnicas de educadores e professores; Para tanto é preciso reconhecermos que na escola existem alunos e educadores com origens diversas, do ponto de vista religioso, étnico, de gênero, de orientação sexual e de classe, e que nenhum grupo humano tem o monopólio da beleza, da inteligência, da racionalidade etc.
Se não somos racistas nós devemos lutar contra as idéias preconceituosas, trabalhando para que no espaço escolar todos tenham as mesmas oportunidades e sejam o alvo dos maiores investimentos intelectuais e de recursos materiais e de nossa atenção afetiva. Superar o problema da discriminação racial na educação não é colocar capoeira, cabelo com trancinha ou feijoada no currículo, deve até passar por isso, mas deve antes passar pelo compromisso dos educadores em tentar qualificar os seus alunos negros para as mesmas posições ocupadas pelos alunos oriundos dos outros segmentos étnicos.
Um tema espinhoso a ser debatido na escolar é a existência de regras de contato informais, tácitas, que definem o lugar de cada um no espaço social e quando podem se relacionar. Consciente ou inconscientemente os professores identificam os seus alunos como brancos ou negros, os próprios alunos brancos e negros se identificam como tal e se relacionam levando em consideração esta identificação prévia. Nesse relacionamento nós achamos “normal”, por exemplo, o aluno negro evadir e se tornar trabalhador braçal, engraxate, camelô, empregada doméstica, como também achamos normal que os alunos brancos tenham sucesso na sua trajetória escolar. O fato de um menino ou menina ser classificado como negro influencia nas oportunidade que lhe serão franqueadas em sua trajetória escolar sem que isso seja assumido, declarado, planejado conscientemente pelos professores.
Vamos imaginar que um menino que seja órfão de mãe, pobre, gago e epiléptico. Para ajudar a manter a casa, esse menino vende doce que a madrasta faz na porta da escola, o pai é um pintor de paredes. Qual o futuro que nós educadores imaginamos para este menino? Um crítico literário norte-americano branco, elitista e conservador como Harold Bloom escreveu o seguinte sobre esse menino: “O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver, o maior literato negro surgido até o presente. Ele é o maior literato negro, creio, da história da literatura universal”. (Folha de São Paulo 3/05/2003).
Não é mais novidade que a expectativa dos professores quanto ao desempenhos dos alunos condiciona (embora não determine totalmente) o desempenho dos alunos. Em sociologia da educação este mecanismo muitas vezes inconsciente de classificação dos alunos é expresso pela relação entre as representações dos professores a respeito dos seus alunos e o desempenho escolar dos mesmos. Aquilo que pensamos sobre as perspectivas de um aluno influencia no seu desempenho escolar e na construção da sua identidade.
Um novo currículo que contemple as diferentes identidades presentes na escola brasileira não poderá sair da cabeça de especialistas ou acadêmicos profissionais, mas sim de processos de negociação pública, no qual os educadores, representantes dos movimentos sociais e das universidades dialoguem sobre o que consideram relevante para constar nos projetos pedagógicos. Só um diálogo no qual tenham voz os representantes das diferentes etnias, gêneros, comportamentos, religiões, idades, aparências físicas etc. tornará a escola democrática para assimilar as demandas legítimas dos agentes de dentro e de fora do espaço escolar, para levá-las em consideração no currículo e no cotidiano da nossa ação educativa.
O racismo e as outras formas de intolerância que observamos na sociedade e que repercute na escola devem ser combatidos porque é no espaço escolar que os cidadãos passam a maior parte da sua vida social, pública, na atualidade. Atualmente, o tempo que as pessoas passam com a família ou no seio de sua comunidade religiosa chega a ser menor do que o tempo de vida escolar, ainda mais porque as relações travadas no espaço escolar tendem a se expandir para as outras instâncias da vida dos agentes.
Como espaço privilegiado de socialização e de convivência deve-se iniciar na escola a nossa formação para a convivência com o outro não-idêntico, o diferente. A escola deve ser o exemplo de como queremos que seja a convivência nas outras esferas da vida social.
Muitos consideram que esta idéia é utópica, afinal a sociedade é competitiva, racista, conservadora, elitista, embrutecedora, e a escola inserida em tal contexto deve expressá-lo fielmente, para não tornar os educandos despreparados para a vida social ao conviverem em um cotidiano escolar tido como fantasioso. Ao contrário, acredito que se a sociedade em que vivemos é violenta e excludente nós podemos transformar a escola em um refúgio, ou, se quisermos uma metáfora belicosa, em uma trincheira de resistência, e não de confirmação da barbárie.

4. Superando o eurocentrismo na educação escolar

Em termos políticos, para superarmos o eurocentrismo, os preconceitos e atitudes discriminatórias através da educação é necessário que utilizemos a escola: a) como um local de luta contra a hegemonia cultural dos grupos sociais dominantes; e b) como um local de expressão cultural e agregação política dos grupos subalternos. Ou seja, a escola pública pode ser um local de formação de uma unidade entre as camadas populares formadas por grupos discriminados pela economia competitiva capitalista e pelos valores eurocêntricos. Mas esta idéia não pode ser uma diretriz puramente teórica, uma vez que só trará bons resultados pedagógicos e políticos se na prática cotidiana da educação escolar os membros dos grupos subalternos se sentirem respeitados e contemplados nos seus interesses e valores.
Para promovermos uma educação democrática que respeite as diferenças de cultura entre os agentes que se relacionam no sistema escolar, devemos imaginar soluções para os problemas educacionais e das comunidades locais que escapem aos parâmetros e às expectativas dos centros hegemônicos de poder e conhecimento.
Henry Giroux nos ensina que “os discursos pós-coloniais representam um espaço para reteorizar, localizar e tratar das possibilidades de uma nova política baseada na construção de novas identidades, zonas de diferença cultural e formas de comunicação ética, que permitam aos trabalhadores culturais e aos educadores transformar as linguagens, as práticas sociais e as histórias que são parte da herança colonial” (GIROUX, 1999: pág. 40). Alguns passos em direção a estes objetivos podem ser os seguintes:
a) Devemos construir uma ética política de respeito às diferenças nas relações sociais dentro e fora da escola, sem os preconceitos depreciativos, estereótipos negativos e sem discriminação de ninguém. O respeito à diferença se torna estratégico se tivermos como objetivo democratizar “e melhorar a qualidade da vida pública” (GIROUX, 1999: pág. 41).
b) Realizar entrevistas junto com os alunos para reconstruir as histórias orais das comunidades, bairros, histórias de vida, relatos sobre a vida cotidiana, que demonstrem a relevância e a legitimidade das experiência das comunidades locais marginalizadas na oposição “centro” versus “periferia”. 
c) Valorizar as formas de expressão cultural criadas pelos alunos e grupos marginalizados pelas instituições dominantes. Isso quer dizer que ao invés de classificarmos e estereotiparmos os grupos humanos segundo as idéias de autores que produziram os seus textos em outros contextos, com os objetivos mais questionáveis, teremos como objetivo o conhecimento sobre como os diferentes grupos representam a si mesmos, como se concebem, como imaginam a sua relação com os outros grupos.
d) Recuperar os saberes indígenas e negros que foram reprimidos e marginalizados pela hegemonia cultural européia.
e) Reconhecer que a língua portuguesa, imposta como a única língua oficial do país em 1770, pelo Marquês de Pombal, em meio a centenas de outras línguas existentes no Brasil, não é a única forma legítima de expressão e pode perfeitamente conviver com os falares brasileiros das diferentes regiões e periferias das grandes cidades e com as línguas indígenas e quilombolas existentes no país.
f) Tornar as culturas populares componentes dos currículos oficiais, considerando-as formas de conhecimento múltiplas e abertas à participação dos indígenas, negros, populações rurais e camadas subalternas das periferias das grandes cidades. Para falar mais uma vez emprestando as palavras de Stuart Hall, “a cultura popular é um dos locais onde a luta a favor e contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta...”, e “é um dos locais onde o socialismo pode ser constituído” (Hall, 2003: pág. 263).
g) Estudar criticamente as formas culturais difundidas pelos meios de comunicação e os modelos dominantes das culturas ocidentais para entendermos como quase sempre difundem tanto representações depreciativas sobre os grupos marginalizados pela hegemonia cultural européia e norte-americana, quanto padrões de sociabilidade consumistas que não são sustentáveis dos pontos de vistas social e ambiental.
h) Tratar no currículo as formas de discriminação racial, classista, sexista para entendermos como surgiram historicamente como instrumentos de marginalização e dominação e exploração de negros, índios, mulheres e homossexuais, que visavam a manutenção dos privilégios dos colonizadores europeus e seus descendentes.
i) Superar a oposição “corpo” versus “mente”, que compartimenta cada aluno e educador em duas dimensões estanques. Com isso o objetivo da escola passa a ser viabilizar a expressão corporal e afetiva e as produções de significado, superando o disciplinamento dos seus corpos, a domesticação de suas mentes e o silenciamento de suas vozes.
j) Transformar a escola em um espaço de aprendizagem da participação democrática, através de reuniões de trabalho e assembléias que envolvam tanto os alunos e educadores como os membros das comunidades locais e movimentos sociais.

Conclusão

Respeitar as diferenças é “expandir o potencial da vida humana e as possibilidades democráticas” (GIROUX, 1999: pág. 47). A educação livre do eurocentrismo é aquela em que as culturas das populações de todas as regiões do mundo não são vistas como primitivas, atrasadas, exóticas, ignorantes e inferiores. Por outro lado, o mesmo raciocínio vale para o tratamento dos povos e expressões culturais da Europa, pois se passarmos a tratá-los como inferiores estaremos apenas imitando a conduta dos mesmos em relação aos “outros”. Em termos práticos, não vamos propor a substituição da língua portuguesa pelo tupi, como pretendia o Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, nem o banimento das religiões cristãs importadas da Europa e já assimiladas pela religiosidade popular de resistência, mas podemos propor algo mais simples como deixarmos de considerar a língua e as religiões dominantes como superiores e as únicas aceitáveis. Para tanto, é necessário que as comunidades escolares estudem e respeitem as variações linguísticas e as religiões populares. Assim, os sujeitos de falares e crenças diferentes dos códigos dominantes não serão desautorizados e poderão expressão sua voz no espaço público.
Superar o eurocentrismo na educação, enfim, é realizar uma contestação das estruturas de poder, pensamento e ação como o capitalismo, o racismo e o patriarcalismo que oprimem inúmeras outras formas de expressão e de vida, para que possamos criar formas locais de convivência baseadas na autonomia das comunidades e escolas e na solidariedade que respeita as diferenças.
A tarefa dos educadores críticos é desafiar e transgredir os conhecimentos e as relações sociais propostas pelas instituições dominantes que concentram as posições de poder em nossa sociedade. A filosofia, a literatura, a ciência e a teologia cristã foram difundidos em todo o mundo pelos povos europeus como se fossem as únicas formas de saber válidas. Procurei argumentar, seguindo a sugestão de Homi Bhabha (1998: pág. 240) “que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento”.
A educação escolar, enfim, não pode ser a transmissão acrítica dos conhecimentos que o Estado e as demais instituições dominantes consideram legítimos, já que é também na escola que construímos as nossas identidades individuais e coletivas e queremos que estas identidades estejam livres do peso das estruturas de poder para que as nossas mentes e as nossas vidas sejam descolonizadas.

Escrito por Walter Praxedes

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