Canen (2001) define o multiculturalismo como um conjunto de princípios e práticas voltados para a valorização da diversidade cultural e para o desafio de preconceitos e estereótipos a ela relacionados. O multiculturalismo, desde sua origem, aparece como um princípio ético que tem orientado a ação de grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito de preservarem suas características culturais. Ele também representa um importante instrumento de luta política.
Assis & Canen (2004) afirmam que a identidade negra é emblemática da luta pela construção e reconhecimento identitário, visto que a mesma é tratada de modo desigual, do ponto de vista histórico, econômico, social e cultural. Silva (2005) afirma que a identidade étnica e racial é, desde o começo, uma questão de saber e poder. Acrescenta que a história do termo “raça”, polêmico e carregado, está estritamente relacionado às relações de poder que opõem o homem branco europeu às populações dos países por ele colonizado.Logo, a escola é um espaço onde as diferenças se encontram, as culturas se cruzam, os excluídos podem ter a vivência da igualdade de acesso e de vivência de aprendizagem escolar.
Munanga (2000), por sua vez, afirma que o conceito de raça para definir a identidade negra nada apresenta de biológico, já que se trata de um conceito carregado de ideologia, escondendo algo não proclamado: a relação de poder e dominação. Afastando-se um pouco de
D’Adesky (2001), que reconhece a identidade étnica, baseada em aspectos culturais (tais como a herança afro), como importante aspecto da identidade negra, Munanga (2000) teme que enquanto o racismo clássico se alimenta da noção de raça, o racismo novo estaria bebendo na noção de etnia, definida como grupo cultural, já que tal categoria seria mais aceitável do que raça. Entretanto, para o referido autor, essa mudança em nada altera a realidade do racismo, pois não “ destrói a relação hierarquizada entre culturas diferentes, que é um dos componentes do racismo” (ibid., p. 29). Em uma perspectiva que parece se aproximar do multiculturalismo em sua vertente crítica, Munanga (2000) propõe que a identidade negra deve ser pensada como identidade política, formada na pluralidade de processos de identidade cultural entre “negros, brancos ou amarelos”, “todos tomados como sujeitos históricos e culturais e não como sujeitos biológicos ou raciais” (ibid., p. 32).
Canen (2001) acredita que a perspectiva multicultural crítica ajuda a superar uma atitude condenatória, resgatando o espaço intra-escolar para viabilizar práticas pedagógicas e ajudem na superação das diferenças culturais, ao invés de apenas abafá-las. Afirma que o multiculturalismo é uma corrente de pensamento político e teórico que visa ao reconhecimento identitário e à justiça social, dando visibilidade ao pluralismo das sociedades, promovendo lutas e combates ao racismo e discriminações contra os sujeitos percebidos como “diferentes” em políticas e práticas. O multiculturalismo crítico, uma de suas correntes, questiona processos racistas, discriminatórios e etnocêntricos que constroem as diferenças marginalizam “o outro” (Canen, 2001). Segundo Canen (2001, 2006), a identidade negra e sua construção/reconstrução positiva, superadora de discriminações e viabilizadora de práticas curriculares que avancem no reconhecimento e valorização do negro na sociedade, apresenta algumas categorias que se destacam nos discursos e nas discussões a seu respeito: cor, raça e etnia. Entretanto, tensões e ambigüidades apresentam-se nesta categoria, quando tomadas de forma essencializada e estanque, resultando, não raro, no congelamento identitário.
Portanto, ser negro é parte de uma construção identitária, em que a identificação racial é também social e culturalmente construída. A construção da identidade negra interessa ao cenário da sociedade brasileira, porque é marcada, historicamente, pelo tratamento desigual ao negro e por ações políticas de ação afirmativa recentes, como a reserva de vagas para negros e pardos nas universidades públicas, o que torna bastante relevante as discussões multiculturais sobre essa construção.
Muitas vezes o conhecimento a respeito do negro é meramente folclórico e pouco
omprometido com a luta pelo desafio às discriminações. Oliveira (2006), por exemplo, em pesquisa realizada em escolas em que atuavam egressos do curso de especialização ministrado pelo Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira da UFF (PENESB/FEUFF), observou que o projeto político-pedagógico (PPP), que revela grandes marcos da identidade institucional multicultural da escola (Canen & Canen, 2005b), na verdade revelou que a inclusão dos estudos sobre a questão negra e não negra era apontado apenas em ocasiões especiais, “caracterizada pela folclorização e superficialidade da questão” (Oliveira, 2006, p. 199). Falta, nesse caso, conforme argumenta Oliveira (2006), o aprimoramento da formação das lideranças escolares para a elaboração do PPP em uma perspectiva de valorização da identidade negra. Ao mesmo tempo, falta, conforme Gonçalves e Silva (2005), uma perspectiva negra de pesquisa que, para além do rigor atribuído a processos de pesquisa convencionais, parta da avaliação da compreensão das civilizações africanas para a humanidade, para a interdependência da riqueza de nações com a escravidão de africanos e o compromisso com o resgate de um novo sistema-mundo valorizador da identidade negra.
Argumentamos, pois, que é fundamental, nesse novo sistema, que a escola tenha consciência de seu papel como uma organização multicultural. Canen & Canen (2005a) consideram organizações multiculturais aquelas organizações que lidam com diferenciados níveis de diversidade cultural. Na escola, podemos dizer que esta diversidade diz respeito não só aos sujeitos que aí trabalham (professores e funcionários), com suas diferenças de raça, gênero, classe social e outras características, mas também à diversidade cultural dos que a ela acorrem (pais e alunos), em constante movimento de hibridização com a identidade institucional da escola, identificada em seu projeto político-pedagógico, em seu clima institucional e nas especificidades do meio em que está inserida. Percebe-se a importância de se ter uma administração escolar também multicultural, através da qual possam ser criadas estratégias organizacionais que busquem a valorização da diversidade cultural e a sensibilização para as suas vantagens, bem como indicar caminhos para se lidar com a mesma, no cotidiano escolar. Dessa forma, o trabalho para a construção e reconstrução das identidades culturais, dentre as quais a identidade negra é emblemática, passa, como argumentamos, por um olhar renovado sobre a escola, entendendo-a não só a partir de seus currículos, mas de suas práticas de gestão cotidianas, no escopo de sua compreensão como organização multicultural, integrando identidades individuais, coletivas e institucionais (Canen & Canen, 2005b) em projetos emancipadores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário